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“COMO UM GRÃO DE MOSTARDA” A FAMÍLIA SALESIANA, A SEMENTE LANÇADA POR DOM BOSCO
Uma releitura ‘salesiana’ de Mt 13,31-32

“Depois dos Lemas tão propositivos e empenhativos dos últimos três anos, venho agora – escreveu o Reitor-Mor – propor-vos outro ainda mais urgente, exigente e promissor. Tem a ver com a nossa identidade e com a nossa missão. Dele depende, com efeito, uma presença mais visível na Igreja e na sociedade e uma acção mais eficaz para afrontar os grandes desafios do mundo actual”.1 O Lema deste ano convida-nos a descobrir aquilo que Dom Bosco quis: fundar uma família ao serviço da juventude. “Partindo da parábola utilizada por Jesus para explicar o Reino dos céus e o seu dinamismo”, o Reitor-Mor atreveu-se a “dizer que a semente lançada por Dom Bosco cresceu até se tornar árvore frondosa e robusta, verdadeiro dom de Deus à Igreja e ao mundo. Com efeito, a Família Salesiana viveu uma autêntica Primavera. Aos grupos originários juntaram-se, sob o impulso do Espírito Santo, outros grupos que, com vocações específicas, enriqueceram a comunhão e alargaram a missão salesiana”.2 Pois bem, ver no grão de mostarda uma imagem evangélica da Família Salesiana é acima de tudo, diria eu, uma audácia, mas nem por isso deixa de ser altamente encorajante: foi Jesus que viu no grãozinho de mostarda uma semelhança com o reino de Deus, a sua grande – única – verdadeira paixão, a razão de ser da sua vida e a causa da sua morte. Descobrindo no grão de mostarda uma figura da Família Salesiana, o padre Pascual Chávez imaginou – e aqui radica, diria, a sua audácia – a Família Salesiana como uma realização histórica do Reino de Deus, isto é, aquilo que Jesus mais tinha a peito. Interessa-nos, portanto, compreender o que Jesus queria significar quando comparou o reino de Deus à semente de mostarda, para poder intuir o que poderá significar para nós hoje ter sido o grãozinho de mostarda tornado árvore frondosa. No Lema, o Reitor-Mor não deu uma explicação da parábola evangélica do grão de mostarda nem revelou a razão da sua escolha; não fez mais do que utilizá-la como ícone bíblico – imagem visual – da Família Salesiana. A falta de traços precisos, de acenos seguros, do magistério deixa-nos – é verdade – mais livres na busca de uma releitura salesiana da parábola, mas torna mais arriscada a nossa proposta. 1. “Falou-lhes de muitas coisas em paábolas” (13,3) A parábola do grãozinho de mostarda está inserida num longo discurso de Jesus, o terceiro dos cinco que Mateus apresenta no seu evangelho. Mt 13 constitui uma unidade literária bem definida (13,1.53a): a seguir aos dois capítulos em que narrou a contestação e o conflito de Jesus com o judaísmo do seu tempo e antes de se consumar a rotura, evidenciada na dolorosa rejeição ‘em sua casa’ (13,53b-58), o evangelista reagrupou num só discurso diversas parábolas,1 sete (cfr. Mc 4,1-34),2 que se referem ao reino dos céus.3  Quem fala: um evangelizador experimentado Percorrendo a Galileia, Jesus apresentou-se como messias, em palavras (5-7) e obras (8-11). A sua obra de evangelização teve sucesso entre a gente, mas suscitou também uma crescente oposição entre os dirigentes. Até agora, tinha-lhes falado através de comparações e imagens. Pela primeira vez, faz um discurso em parábolas (13,3.10.13. 18.24.31.33.34.36.53), que o evangelista colocou a meio da sua macro-narração; esta disposição prova a importância que Mateus dá ao discurso para compreender Jesus, o mistério da sua pessoa e o género do seu ministério. A intenção do narrador é clara: o anúncio do reino dos céus, que Jesus realiza desde que, tendo saído de Nazaré, estabeleceu residência em Cafarnaum, junto ao mar (4,13), suscitou a fé mas também pôs a descoberto a incredulidade. E quantas tentativas fez então Jesus; não fez outra coisa do que semear o evangelho do reino, que foi totalmente recusado ou acolhido em graus diversos. Com as parábolas que agora narra, Jesus faz o ponto da sua experiência pessoal de evangelizador na Galileia – primeiro nível básico – e, na intenção de Mateus – segundo nível –, da consolação a uma igreja que, cerca de cinquenta anos depois, corre o risco de se sentir desencantada com o escasso êxito que a sua pregação do evangelho está a ter. Emerge, por isso, a figura de Jesus consciente do seu insucesso pessoal como evangelizador, isto é, Jesus que tenta descobrir, para explicar a si mesmo, e explicar aos outros, o motivo pelo qual a sua acção não está a produzir os frutos desejados; e a razão que apresenta aos seus discípulos torna ainda mais desconcertante o seu insucesso: fala em parábolas “para que vendo não vejam, e para que ouvindo não oiçam e não compreendam” (13,13). Aos que o escutam pede uma decisão, sempre a mesma (4,17: “convertei-vos”), que, quando se verifica, leva à compreensão e, quando falta, leva ao endurecimento do coração (13,10-15).  De que fala: de um reino de Deus que está próximo O discurso das parábolas é um discurso sobre o reino dos céus (13,24.31.33.44.45.47.52). Todas as parábolas – sete – têm como tema o crescimento imparável do reino; duas delas são explicadas pelo próprio Jesus, um facto um tanto insólito na tradição evangélica, mas que tem uma boa razão: Jesus, por duas vezes (13,10-17.34-35), justifica-se por falar em parábolas quando fala da natureza do reino dos céus. Logo pela disposição das parábolas emerge uma certa lógica interna, através da qual se descobrem as convicções do narrador; pela sua experiência como pregador, Jesus, como “o dono da casa que tira do seu tesouro coisas novas e coisas antigas” (13,52), fala da essência da evangelização, do seu crescimento imparável e das suas inevitáveis consequências. A primeira parábola, a do semeador, (13,3b-9), explica como respondem de forma diferente os que escutam a pregação do evangelho e porquê: a semente nem sempre encontra um bom terreno nem o melhor acolhimento (13,18-23). A segunda, a da cizânia, (13,24-30), avisa que o evangelista do reino não é o único a semear o bom terreno – o inimigo movimentou-se enquanto os servos bons dormiam (13,25) – e estabelece a próxima colheita como o momento do juízo e da separação: o bem e o mal têm de conviver e os discípulos não podem desesperar. A terceira parábola, a do grão de mostarda (13,31-32), e a quarta, a do fermento, (13,33), são gémeas e revelam uma lei fundamental da evangelização, o seu crescimento magnífico e imparável. Passou-se assim do acto de evangelizar à natureza da evangelização. A quinta, a do tesouro, (13,44) e a sexta, a da pérola (13,45-46), também gémeas, realçam a alegria que a descoberta do reino traz consigo, a qual faz com que quem o encontra seja capaz de rejeitar tudo, com tanto que possa ter aquilo que descobriu. A sétima, a da rede (13,47-50), conclui o discurso recordando que os bons terão de conviver com os maus até ao fim do mundo, quando chegar o momento da inevitável prestação de contas.  A quem fala: um público dividido pela capacidade de compreender O grupo dos ouvintes de Jesus é duplo, exactamente como no discurso do monte: uma numerosa multidão, junto ao mar (13,3.10.13.24.31.33.34) e os discípulos, em casa (13,36.51). À multidão fala ao ar livre (13,1-35), mas só em parábolas (Mt 13,1-3a.10b.13a.34); aos discípulos, acrescenta uma explicação clara (13,10a.18.36), em casa (13,36-52): as pessoas – ‘aqueles’, como Jesus os designa com certo distanciamento: 13,11.13 – ouvem a palavra sobre o reino; os discípulos – ‘vós’ 13,11,18.19 – são introduzidos no conhecimento do reino (13,11.19.23.51). É significativo que tenham sido os discípulos, admirados pelo facto de Jesus falar à multidão só em parábolas (13,34), a interrogar Jesus: “Por que lhes falas em parábolas?” (13,10). A resposta de Jesus não pode ser mais chocante: “Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não …; por isso lhes falo em parábolas, para que vendo não vejam e ouvindo não ouçam nem compreendam” (13,11.13). E o que acrescenta a modo de prova resulta ainda mais desconcertante, até injusto: tal comportamento – comenta Jesus – cumpre a Escritura (Is 6,9-10: “ouvi, tornai a ouvir, mas não compreendereis. Vede, tornai a ver, mas não percebereis. Endurece o coração deste povo, ensurdece-lhe os ouvidos, fecha-lhe os olhos. Que os seus olhos não vejam, que os seus ouvidos não ouçam, que o seu coração não entenda, que não se converta e Eu o cure.» Quem não é capaz de descobrir em Jesus os segredos do reino dos céus aumenta a cegueira perante o Reino de Deus. O acesso ao Reino ou a exclusão dele decidem-se no acolhimento ou na rejeição de Jesus e da sua mensagem; perante Jesus, não é possível a neutralidade nem a indiferença, porque está em jogo Deus, o seu reino. Onde se encontra a advertência sobressai, contudo, a oportunidade: tornar-se seguidor de Jesus leva a ‘compreender’ os segredos do reino. Mas – e isto torna-se ainda menos aceitável – “conhecer os mistérios do reino dos céus” é concedido gratuitamente aos discípulods de Jesus: “a vós é concedido…, mas a eles não” (13,11). Quando Jesus concluir o seu discurso, os discípulos responderão sim à sua pergunta: “compreendestes tudo isto?” (13,51): saberão as coisas do reino, mesmo que proclamadas em parábolas, porque, sendo discípulos de Jesus, ser-lhes-á concedido. A convivência com o Mestre permite explicar-lhes as parábolas, mas compreendê-las-ão porque lhes foi dada a graça de compreender os segredos do Reino. O discurso é um apelo urgente a viver com Jesus e a tornar-se, mediante a escuta pública e as explicações privadas, seus discípulos: mas consegue-se apenas por graça imerecida.  Como fala: com uma linguagem ‘obscura’ Ao introduzir o discurso, Mateus diz que Jesus “falou de muitas coisas em parábolas” (13,3). A parábola, a narração de uma anedota, uma narração alegórica, uma comparação desenvolvida como crónica, não é um modo de falar inventado por Jesus, mas foi por Ele privilegiado, tanto que se tornou característico do seu ensinamento. Antes, segundo Lhe faz dizer Mateus, é a maneira como Deus quer que se expliquem os mistérios do reino (13,10-17.34-35, cfr. Is 6.9-10; Sal 78,2). Normalmente, a parábola, uma narração tirada da natureza ou da vida quotidiana, apresenta um facto “que impressiona o ouvinte com a sua vivacidade e originalidade e o deixa naquele mínimo de dúvida a respeito do significado da imagem suficiente para estimular o pensamento”1 e levar à acção. A parábola toma a vida quotidiana como sinal de Deus; a experiência da vida compartilhada transforma-se em manifestação de Deus; como é a vida narrada assim é o comportamento de Deus. Contudo a parábola não respeita tanto a vida como é, embora se apresente como factos de vida, quanto como devia ser; chama a atenção dos ouvintes mas não transmite informações, pede antes conversão. As parábolas narradas por Jesus, mais do que comparações tiradas da vida quotidiana para ilustrar algum ensinamento genérico – não são provérbios! –, são narrações, cuja composição e cujos termos recordam o modo de pensar de Jesus, as suas convicções mais firmes e profundas, a sua visão pessoal do mundo e, sobretudo, a sua fé pessoal em Deus. Em concreto, o tema do discurso das parábolas em Mt 13 enfrenta uma realidade muito dolorosa para judeus crentes, antes de tudo para o próprio Jesus, depois, mais ainda, para os primeiros cristãos provenientes do judaísmo (Rm 9-11): nem todo o Israel aceitou Jesus, nem como pregador do reino dos céus durante o seu ministério, nem como Senhor e Filho de Deus, após a sua ressurreição. O mistério permanece ainda hoje. O Jesus de Mateus tenta dar uma explicação em parábolas a todos, dando depois uma instrução mais clara aos discípulos. 2. “… como um grãozinho de mostrada” (13,31) Um dia, “o dia das parábolas” (13,1), Jesus, tendo saído de casa (Mt 12,46-50), sentou-se à beira-mar. Sentado, em atitude de ensinar (5,1: no monte), colocou-se no centro da atenção da multidão, tão numerosa que Jesus teve de subir para uma barca com os seus discípulos (13,10). Jesus termina o seu discurso à multidão precisamente com duas breves parábolas (13,34): 31 Expôs-lhes outra parábola: ‘O Reino do Céu é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a mais pequena de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos.’ 33 Disse-lhes outra parábola: ‘O Reino do Céu é semelhante ao fermento que uma mulher toma e mistura em três medidas de farinha, até que tudo fique fermentado.’ 34 Tudo isto disse Jesus, em parábolas, à multidão, e nada lhes dizia sem ser em parábolas. 35Deste modo cumpria-se o que fora anunciado pelo profeta: Abrirei a minha boca em parábolas e proclamarei coisas ocultas desde a criação do mundo. A parábola do grão de mostarda1, que retoma o tema da semente (13,3.24), é apresentada por Mateus geminada com a do fermento;1 formam como que um díptico, dotadas de uma estrutura simétrica, com retomas mesmo lexicais;1 devem por isso ser interpretadas em conjunto. Narram duas situações diferentes, é verdade, mas correspondentes a tarefas quotidianas de homem, um agricultor, e de mulher, uma dona de casa; ambas apresentam o crescimento de qualquer coisa que, ao princípio, estava escondida, como imagem do reino dos céus, isto é, o grãozinho de mostarda e a pequena quantidade de massa fermentada; o homem e a mulher não são, portanto, figuras do reino, mas são-no as suas acções. A segunda parábola, a do fermento, é mais condensada; não faz alusão a nenhum texto bíblico e falta nela o momento descritivo que explicite o contraste entre a pequenez dos inícios e a grandeza do resultado, embora esteja implícito na oposição entre uma pequena quantidade de fermento e a massa enorme. Os dois protagonistas, o homem e a mulher, são apresentados nas suas actividades típicas do dia-a-dia: a sementeira, a confecção do pão. Deve notar-se que as duas acitividades, domésticas e comuns, se destinam a sustentar a vida e a família. A escolha da comparação não é gratuita. A mostarda, sinapis nigra, é uma hortaliça, não uma verdadeira árvore; é semeada num horto (Lc 18,19), não num campo. É exagerado afirmar que um grãozinho, que pode atingir 1 milímetro de comprimento, seja a mais pequena das sementes; a expressão, todavia, tornou-se proverbial (em Mt 17,20 aparece como imagem do poder da fé que move as montanhas); hiperbólico, porém, afirmar que se torne uma planta, maior que os outras hortaliças (13,22). A ideia que se quer transmitir é a da pequenez, a insignificância, da semente em relação à planta adulta, que pode atingir numa só época a altura de 3 ou 4 metros, onde os passarinhos fazem ninho2, algo um tanto insólito;3 juntamente com o efeito de grandeza aflora, portanto, o do crescimento que a torna capaz de abrigar os passarinhos. Na parábola não se afirma (Lc 13,19) mas supõe-se uma expectativa escatológica, longamente aguardada, de Israel, segundo a qual Israel acabria por se tornar um grande reino e casa para os gentios (Ez 17,23.31; Dn 4,9.18). O fermento, agente de transformação, não descuida o contraste entre uma pequena quantidade de fermento e a grande massa que é levedada; mas acrescenta uma conotação importante: o escondimento do fermento que transforma a massa, fazendo-a crescer e aumentar de volume: o fermento torna-se eficaz, de forma lenta mas imparável, porém só quando escondido e misturado. Três medidas de farinha (Gn 18,6) corresponderiam a mais de 20 quilos de farinha, uma dose de pão que seria suficiente para matar a fome a mais de 100 pessoas,2 uma quantidade excessiva para o trabalho de uma só fornada. Resulta um tanto estranha a escolha do fermento como imagem do reino, embora aqui se subentenda que é uma força vital positiva (Mt 16,6; 1 Cor 5,6-8; Gal 5,9). Habitualmente o fermento era visto como algo necessário, mas impuro e motivo de corrupção: no templo só se pode usar o pão sem fermento, durante a semana pascal o pão que se come é ázimo (Mc 8,15). Aqui está, contudo, presente o conceito de escondimento: às multidões Jesus falava do reino em parábolas (13,10), ocultando os seus mistérios (13,13: “para que ouvindo não oiçam e não compreendam”), e comparava-o à semente debaixo da terra (13,31), ao fermento amassado (13,33), a um tesouro enterrado (13,44). Oculto, o reino de Deus impõe-se e transforma o mundo: quem espera algo de espectacular e de espaventoso ficará desiludido: Deus, como é seu hábito (Jo 5,17), actua como o fermento que leveda por dentro, sem desistência, sem paragem. As duas parábolas, tão semelhantes que são gémeas, referem-se, portanto, à verdadeira natureza do reino dos céus, à sua forma de se realizar. Não abordam, todavia, o problema específico das diversas reacções à pregação de Jesus, já tratado na parábola do semeador: oferecem antes informação respeitante à forma como Deus se torna Rei: aquilo que habitualmente acontece com a semente de mostarda e com o fermento, acontece com Ele, é assim que Deus se torna rei. A pequenez, a imperceptibilidade, a irrelevância dos inícios podem alimentar desconfiança e dúvidas sobre o vigor actual e sobre os efeitos futuros. Mas o extraordinário resultado que se espera torna a recusa mais misteriosa. As parábolas querem confortar quem aceitou o evangelho e advertir quem o rejeita. Exactamente por isso, o acento é colocado no contraste entre a sua pequenez inicial e magnificência final. O crescimento é mencionado apenas incidentalmente (13,32). A parábola do grão de mostarda inspira-se em Ez17,23, onde o profeta fala de um ramo cortado, Israel, que se torna cedro imponente, e em Dn 4,9.18, onde num sonho Nabucodonosor vê uma grande árvore, em que as aves do céu, os povos da terra, se abrigam (cfr. Sal 104,12; Ez 31,6). Em ambos os casos, no reino todas as nações poderão encontrar protecção e refúgio, sobrevivência e lar. A perspectiva da imagem não pretende referir quantos se acolhem debaixo da árvore, mas a enorme capacidade de acolher a todos. Nas parábolas transparece uma certeza de fé profunda: nos modestos inícios de Jesus, muito mais modestos do que os de outros reformadores de Israel, pode-se já reconhecer a magnificência final. Há outro aspecto nas duas parábolas: embora o contraste claro seja entre a pequenez dos inícios e a grandeza dos resultados finais, fica subentendido que não se realiza tudo num processo imediato; o crescimento, a fermentação requer longos tempos durante os quais não se deixa ver, mas requer-se um período prolongado e invisível até que o grãozinho/o fermento realize o seu papel e cresça. As duas parábolas têm, portanto, um ponto focal: o óbvio contraste entre um início insignifiacante no presente e um resultado excepcionalmente grande no futuro põe em evidência o confronto real entre a provada escassa eficácia da missão de Jesus e dos primeiros cristãos e a segura e viva espera do reino de Deus que virá. As palavras de Jesus devem ter desapontado, arrasado até, os seus primeiros ouvintes: uma grande árvore (Ez 17,2-10.2-24; 3,3-18; Dn 4,7-12.17-23), não uma pequena semente da horta, teria sido um termo de comparação mais apropriado para descrever o reino de Deus, que se esperava realizasse a vitória definitiva de Deus sobre os inimigos de Israel. O reino de Deus é muito diferente dos desejos alimentados por aqueles que o esperam e das imagens que dele constroem; mas mais decisivo ainda, está já presente aqui, está nos inícios, mas já presente e activo no irrelevante e, aparentemente ineficaz, trabalho apostólico de Jesus e dos primeiros pregadores. Não é, portanto, a semente nem o fermento que são sinal do reino, mas aquilo que lhes acontece: o crescimento, a levedura, escondida mas imparável, é a analogia do modo de agir de Deus. Enquanto que o início é o tempo do anúncio (Jesus, comunidade), o resultado é o reino de Deus. Na semente e no fermento existe a força que transforma de maneira não visível mas eficaz: o reino de Deus é o fruto do anúncio do evangelho, quer seja Jesus quer sejam os discípulos os pregadores; o fim, esplendoroso e além de todas as expectativas, está agora no início. As palavras de Jesus são um premente convite a não ver só com angústia o momento presente, mas a entrever já no presente a força imparável da presença divina: o paralelo não explica apenas a oposição entre aquilo que há, uma semente minúscula e escondida, e aquilo que acontecerá, qualquer coisa de grande e útil, a árvore e o pão; afirma, sobretudo, que aquilo que um dia será realidade está já agora vivo e vivificante, apesar de escondido e pequeno. A manifestação da realeza de Deus é insignificante, se considerarmos os seus inícios, quer na actividade de Jesus, quer na da comunidade cristã. Mas quem semeia – Jesus, a Igreja – vive na esperança das promessas de Deus testemunhadas nas escrituras. O evangelista vislumbra já os prenúncios daquele cumprimento na abertura missionária dos pagãos (8,11; 28,19): nas duas fases, na boca de Jesus e na pregação de Mateus, a parábola é uma profissão de esperança; a confiança num final glorioso torna mais firme a paciência no presente. A partir de Jesus o terreno esconde o grãozinho, e a massa é levedada pelo fermento, embora ainda não se veja; Deus, apesar de não se ver, está a trabalhar; o seu reino está iniciado. 3. … a semente lançada por Dom Bosco “Compreendestes isto?” (13,51), perguntou Jesus aos seus discípulos no fim do discurso. E eles, um tanto distraidamente, responderam que sim. Bem gostava que esta fosse também a vossa resposta, mas não me atrevo a fazer-vos a pergunta. A parábola do grão de mostarda transmite o ensinamento de Jesus sobre o reino e sobre a sua experiência de pregador, a sua convicção sobre a presença de Deus nos humildes inícios da pregação do reino, a confiança do pregador na extraordinária força do evangelho. Jesus fala a todos, mas – não esqueçamos – oculta a muitos e revela a poucos: “a vós foi dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não” (13,11). E nós, Família Salesiana, que devemos extrair da parábola escolhida pelo Reitor-Mor para nos identificarmos como família de Dom Bosco? Que é que nos foi dado a conhecer na parábola do grãozinho de mostarda? Nenhuma parábola exprime tudo aquilo que se poderia dizer, nem tudo aquilo que se esperaria/desejaria escutar. A parábola do grão de mostarda, como também a do fermento, não fala da família em geral, e muito menos da família salesiana em particular, fala do reino de Deus, da sua tranquila mas surpreendente força vital, da sua invisível mas constante eficácia. O reino chega como energia oculta e tem consequências diferentes, que devem ser vividas com gratidão por quem consegue ouvir e compreender o desígnio de Deus e que devem ser tidas como grave advertência por aqueles a quem não é dado compreender. Comparar o crescimento maravilhoso do grãozinho de mostarda com o surpreendente crescimento da Família Salesiana permite-nos, julgo eu, ver a família salesiana como  a realização ‘salesiana’ do reino de Deus Viver a fé pessoal e uma vocação comum é para nós a forma carismática – o caminho ‘salesiano’, diria – de nos tornarmos “reino de Deus”. Como salesianos, não fomos chamados para outra coisa senão para construir na terra dos jovens o reino dos céus: a nossa missão é a de Jesus, não servir os nossos próprios desígnios mas tornar realidade o projecto de Deus. “Dom Bosco sonhou uma missão juvenil e popular de múltiplas dimensões e orientou as forças dos que compartilhavam o seu projecto educativo e salvífico num vasto movimento. A prodigiosa fecundidade da Família Salesiana, significativo fenómeno da perene vitalidade da Igreja, disso dá testemunho” (CC 2). “A consciência de um parentesco espiritual e de uma responsabilidade apostólica comum produziu relações e intercâmbios fraternos entre os grupos e a sua presença original na Igreja entre a juventude particularmente necessitada” (CC 2): os numerosos grupos que constituem hoje a Família Salesiana “formam um único organismo vital” e “intensificam, antes de tudo, a eficácia do testemunho, [e] tornam mais convincente o anúncio do Evangelho, a penetração do espírito das bem-aventuranças no mundo, o amor educativo para com os mais carenciados” (CC 3). O salesiano, religioso ou não, torna presente o reino de Deus se, e quando, faz nascer e crescer a Família Salesiana; diria antes, como salesiano, não tem outro modo de realizar entre os jovens o reino dos céus.  que se torna presente na evangelização dos jovens A parábola do grão de mostarda é uma prefiguração de como cresce o reino de Deus, uma vez semeado o evangelho. O RM viu nela prefigurado também o crescimento da FS. Mas o reino de Deus, e a Família Salesiana, só crescerão se, como o grão de mostarda, forem antes semeados. Visto que uma vez lançada à terra, a semente se desenvolve sem interrupção, de maneira por vezes imperceptível mas sempre eficaz. O mérito não é de quem semeia, mesmo que tenha sido o próprio Jesus, a sua Igreja, ou a Família Salesiana, mas da semente – que contém em si uma vida explosiva, uma imparável força reprodutiva. O progresso da semente, a vitalidade da sua energia escondida, é sempre inexplicável mas torna-se evidente: semeia-se um grãozinho, abrigam-se as aves do céu na sua planta. “Toda a obra de Dom Bosco nasceu de uma simples catequese e a evangelização e a catequese, que definem o seu âmbito e aprofundamento, continuam a ser para a Família Salesiana uma dimensão fundamental”. Se a Família Salesiana faz seu “o compromisso da Igreja contemporânea, a nova evangelização” (CM 28), terá de retornar às suas origens mantendo-se fiel à “riqueza profética de Dom Bosco” (CM 4). Para o conseguir, porém, deverá, como Jesus, como Dom Bosco, contar com a força irresistível do evangelho, mais do que com os seus próprios recursos e capacidades, confiar nas promessas de Deus, mais do que nas expectativas dos jovens. Elemento característico da paixão evangelizadora de Dom Bosco foi, de facto – como recordava o RM no discurso de encerramento do CG26 – “a convicção do valor de fermento e da força transformante que o evangelho tem”3. Se evangelizar é hoje “a urgência principal da nossa missão”3, a Família Salesiana apenas se tronará evangelizadora se, embora reconhecendo e sofrendo a aparente ineficácia da sua acção, acreditar na força imparável e sempre vencedora do evangelho.  uma evangelização perseverante, paciente, mas segura de si e dos resultados A mensagem da parábola do grão de mostarda, precisamente, realça o contraste que existe entre uma realidade inicial pequena e inobservada e o surpreendente sucesso final. Mas quem a pronunciou sente profundo incómodo pelo insucesso do seu ministério; contra a evidência, fala da sua ‘fé’ no poder vital da semente. Jesus, o evangelizador, não conseguia converter todos os que O escutavam, mas conseguiu tornar vários deles seus inimigos; consciente do seu fracasso pessoal, estava, contudo, certo da eficácia de Deus que realiza o seu reino no mundo pelo modo como actuam a grão de mostarda [e o fermento]. Esta convicção de Jesus acompanhava a sua experiência apostólica, uma experiência que não se pode pensar de todo conseguida; exactamente por isso, exprime uma profunda atitude de confiança: fé no que fazia e em como o fazia era o alimento da sua firme esperança. Perante as escassas conversões obtidas, é um canto de fé à indomável expansão e poder transformante do reino de Deus. A Família Salesiana pode com razão sentir-se identificada com o grão de mostarda: “a mais de cem anos da sua morte – escreveu o padre Vecchi – o fenómeno salesiano continua a surpreender pela extensão geográfica e pelo incremento numérico dos grupos, que com originalidades específicas olham para Dom Bosco como pai de uma grande família espiritual (CC Proémio). Mas não basta ter crescido ‘miraculosamente’, se o crescimento não continuar: para realizar a imagem bíblica, e o ‘sonho’ de Dom Bosco, devemos tornar-nos não outra grande planta, mas “a maior das… árvores de modo que as aves do céu se abriguem nos seus ramos”. Enquanto houver jovens a acolher e ‘abrigar’, a Família Salesiana não deve parar nem descansar; enquanto houver jovens a salvar, só se deve pensar em crescer para dar vida, para dar a própria vida. Compreender ‘estas coisas’ é dom de Deus Jesus terminou o seu discurso das parábolas sobre o reino peerguntando aos seus discípulos se tinham compreendido; eles responderam que sim (13,31). Antes, os discípulos tinham perguntado a Jesus por que motivo só falava à multidão em parábolas (13,10). A razão apresentada por Jesus perturbou muito mais os discípulos do que os tinha desconcertado o seu modo hermético de falar à multidão: “porque a eles não foi dado conhecer os mistérios do reino” (13,11). “A Família Salesiana viveu uma autêntica Primavera”, de forma a representar agora uma realização algo surpreendente do reino dos céus no mundo dos jovens. “Hoje é evidente aos olhos de todos como aumentou a Família, como se multiplicou o trabalho realizado e o que sonhamos; alargou-se sem limites o campo de acção em benefício de jovens e adultos. Por isso estamos gratos ao Senhor e tomamos consciência da nossa maior responsabilidade”.3 Nascida da graça de Deus, a Família Salesiana será graça de Deus para os jovens se viver reconhecendo – e mesmo grata por isso – que, na sua existência, Deus está presente actuando a salvação “como grãozinho de mostarda” (13,31). Viver como Família a vocação salesiana comum é a prova de ter compreendido os mistérios do reino e de nos podermos compreender como receptores do dom de Deus.

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